A Casa França-Brasil apresenta a exposição “O Teatro do Terror”, individual de Ismael Monticelli (vencedor da quinta edição do Prêmio FOCO da ArtRio), que propõe uma reflexão sobre os ataques antidemocráticos ocorridos em 8 de janeiro de 2023. Em diálogo com o Futurismo — movimento artístico do início do século XX associado ao fascismo —, Monticelli realiza uma instalação que transforma o edifício projetado por Grandjean de Montigny em um palco de combate, violência e teatralidade, evidenciando o caráter midiático e espetacular da tentativa de golpe contra o Estado Democrático de Direito.
Após receber mais de 40 mil visitantes no Museu Nacional de Brasília, a instalação chega ao Rio de Janeiro em um momento simbólico de dois anos dos atos que vandalizaram as sedes dos Três Poderes, reexaminando suas complexidades, ressonâncias e desdobramentos. O público é convidado a refletir sobre como a violência se entrelaça com a celebração, ecoando na estética dos movimentos extremistas e suas representações culturais. Com texto assinado por Clarissa Diniz, a exposição ficará em cartaz até o dia 23 de fevereiro de 2025, com visitação gratuita de terça a domingo, das 10h às 17h.
A instalação de Monticelli ocupa os 30 metros de extensão da nave central da Casa França-Brasil e
apresenta uma cena de conflito com figuras humanas em escala real, pintadas em tinta acrílica sobre caixas de papelão abertas e recortadas. Para criar essas figuras, o artista se apropriou do imaginário das obras do italiano Fortunato Depero, produzidas na década de 1920. Nesse período, Depero estava alinhado ao programa estético e ideológico do futurismo, criando imagens que exploravam o tema da guerra e do combate.
Em uma obra em particular, intitulada Guerra = Festa (1925), Depero retratou em tapeçaria uma
cena da Primeira Guerra Mundial. No entanto, ao contrário das expectativas de truculência e
sanguinolência, a imagem esconde a violência sob um véu alegre e lúdico, sugerido pela profusão de cores
e formas na composição.
É na fronteira entre a violência e o jogo que se situa Guerra = Festa, onde Depero retratou o conflito como um grande espetáculo, uma celebração, num motim de formas e cores, alinhando-se completamente ao programa futurista de ‘glorificar a guerra’ como uma força capaz de ‘curar, purificar’ a sociedade’. As obras de Depero desse período parecem ressoar com os eventos de 8 de janeiro, que transformaram a violência e a destruição em um jogo festivo, um ‘turismo da violência’. Nos grupos de WhatsApp organizados para planejar a ação, os organizadores utilizavam uma mensagem em código para sinalizar a ocupação da Esplanada dos Ministérios, referindo-se ao evento como um”dia de festa”. A senha escolhida foi: Festa da Selma”(em alusão ao grito militar “Selva”).
Ismael Monticelli Monticelli escolheu o papelão como material principal para sua instalação, não apenas por suas propriedades físicas, mas também por sua história simbólica. Durante as Guerras Mundiais, o papelão desempenhou um papel crucial em diversas aplicações militares, como na fabricação de capacetes, contêineres de armazenamento e até embarcações. Devido à necessidade de redirecionar metais para o esforço de guerra, muitos itens cotidianos, que antes eram feitos de lata, chumbo e ferro fundido, passaram a ser produzidos em papelão.
Outra questão crucial da escolha do material é sua precariedade: “A instalação, que tem frontalidade evidente, utiliza a nave da Casa França-Brasil como um palco teatral desprovido de sua caixa cênica, expondo a fragilidade que sustenta o conflito retratado na parte frontal. Ao observar a obra por trás, revela-se uma paisagem de silhuetas de papelão, com as bordas borradas pela tinta e sustentadas por blocos de concreto. É uma espécie de cenografia que se desnuda, revelando suas próprias entranhas e ressaltando a vulnerabilidade inerente à materialidade e à narrativa que compõe”, ressalta o artista.
Um dos principais procedimentos artísticos de Ismael Monticelli é repensar imagens, histórias e narrativas estabelecidas, reorganizando-as ao confrontá-las com questões atuais. Em O Teatro do Terror, o artista revisita os eventos de 8 de janeiro à luz de uma das vanguardas do início do século XX – o futurismo. “Uma das primeiras perguntas que me fiz foi: como abordar esse acontecimento com uma estética e um programa ideológico que se alinhem a ele? O futurismo me pareceu uma forma de pensar as invasões em Brasília, especialmente porque tanto essa vanguarda quanto o 8 de janeiro parecem compartilhar uma ânsia pela destruição de tudo”, comenta o artista.
O Futurismo e o Fascismo
Inaugurado há mais de 100 anos, o Manifesto Futurista (1909), escrito por Filippo Tommaso Marinetti e publicado no jornal francês Le Figaro, estabeleceu as bases de um programa que seria desenvolvido e refinado pelos artistas italianos ao longo dos anos. O manifesto exaltava a velocidade, a violência e a destruição como fontes de energia e renovação. Os futuristas celebravam a guerra, a masculinidade, o militarismo, o patriotismo como forças purificadoras, capazes de abrir caminho para uma nova ordem. A relação complexa do Futurismo com a guerra é destacada por sua postura paradoxal durante o conflito. Enquanto muitos movimentos vanguardistas, como o Dadaísmo, condenaram a guerra e as instituições responsáveis, os Futuristas, apoiaram-na entusiasticamente. Eles defendiam a destruição de museus, bibliotecas, universidades e qualquer resquício de sentimentalismo, que consideravam sinais de fraqueza. Para os futuristas, recomeçar do zero era essencial, incluindo a rejeição do feminismo e da igualdade social, vistos como valores ultrapassados e covardes.
A exposição é uma realização da Portas Vilaseca Galeria e dá início às comemorações dos 15 anos da
galeria carioca em 2025.